Ylla Ray Bradbury
Havia, no planeta Marte, à margem de um mar morto, uma casa de colunas de cristal, e todas as manhãs podia-se ver a Senhora K comendo os frutos dourados que nasciam nas paredes de cristal, ou limpando a casa com punhados de poeira magnética que retirava toda a sujeira e depois se dispersava no vento quente. De tarde, quando o mar fóssil estava quente e imóvel, as árvores de vinho mantinham-se eretas no quintal e a pequena e distante cidade marciana de marfim não tinha ninguém nas ruas. Podia-se ver o Senhor K, no seu quarto, lendo um livro de metal com hieroglifos em relevo sobre os quais passava os dedos, como alguém tocando uma harpa. E do livro, ao contato dos seus dedos, uma voz cantava, uma voz antiga e suave, que contava histórias do tempo em que o mar banhava a costa com vapores vermelhos e os homens lancavam em combate nuvens de insetos de metal e aranhas elétricas. O Senhor e a Senhora K moravam havia vinte anos à margem do mar morto, e seus antepassados tinham vivido na mesma casa que girava e seguia o curso do sol, como um girassol, havia dez séculos. O Senhor e a Senhora K não eram velhos. Tinham a bela pele castanha do autêntico marciano, os olhos amarelos amendoados, a suave voz musical. Antigamente, talvez tivessem pintado quadros com fogo químico, nadado nos canais na época em que as árvores de vinho os enchiam com seus licores verdes e conversado até o amanhecer sob os retratos azuis fosforescentes, na sala de estar. Agora não eram felizes. Nesta manhã, a Senhora K ficou parada entre as colunas, ouvindo as areias quentes do deserto fundirem como cera amarela, parecendo correr para o horizonte. Algo estava para acontecer. Ela esperava. Olhava o céu azul de Marte como se ele pudesse, de um momento para outro, encolher-se, coisa brilhante e milagrosa. Nada aconteceu. Cansada de esperar, caminhou entre as úmidas colunas. Uma chuva suave brotava dos capitéis acanalados, caía suavemente sobre ela e refrescava o ar abrasador. Naqueles dias calorentos, passear entre as colunas era como andar por um regato. O chão brilhava com os filetes de água fresca. Ouvia ao longe o marido tocando o livro, incessantemente, sem os dedos jamais sentirem-se cansados das antigas canções. E desejou em silêncio que ele tornasse a abraçá-la e tocá-la como a uma pequena harpa, passando tanto tempo ao lado dela como o que dedicava aos seus incríveis livros. Mas não. Sacudiu a cabeça e encolheu imperceptivelmente os ombros. As pálpebras desceram suavemente sobre os olhos dourados. O casamento nos envelhece e torna rotineiros, pensou. Atirou-se numa poltrona que se curvou para recebê-la, cerrando os olhos com força e nervosamente. E teve o sonho. Os dedos castanhos tremeram e ergueram-se, crispando se no ar. Um momento depois, endireitou o corpo, sobressaltada. Olhou rapidamente em volta, como se esperasse ver alguém, e pareceu decepcionada. Não havia ninguém entre as colunas. O Senhor K apareceu numa porta triangular. — Você me chamou? — perguntou, irritado. — Não — respondeu a Senhora K. — Pensei ter ouvido você gritar. — Eu? Estava cochilando e tive um sonho. — A esta hora? Não é seu costume. A Senhora K continuava sentada, imóvel, atordoada pelo sonho. — Um sonho estranho, muito estranho — murmurou. — Ah. O Senhor K queria, evidentemente, voltar para o seu livro. — Sonhei com um homem — disse a mulher. — Com um homem? — Um homem alto, de um metro e oitenta. — Que bobagem. Um gigante, um gigante, disforme. — No entanto... — respondeu a Senhora K; procurando as palavras. — Ele parecia bem. Apesar de sua altura. E... acho que você vai pensar que sou louca, mas... tinha os olhos azuis! — Olhos azuis? Deuses! — exclamou o Senhor K. — Qual será seu próximo sonho? Suponho que os cabelos dele eram negros. — Como você adivinhou? — perguntou a Senhora K, excitada. O Senhor K respondeu, friamente: — Escolhi a cor mais improvável. — Pois eram negros! — exclamou ela. — E a pele branquíssima! Era muito estranho. Usava um uniforme desconhecido. Veio do céu e falou comigo amavelmente. — Veio do céu? Que bobagem! — Veio numa coisa de metal que reluzia à luz do sol — lembrou-se a Senhora K, e fechou os olhos evocando a cena. — Eu olhava para o céu e alguma coisa brilhou como uma moeda que se atira ao ar, imediatamente cresceu e desceu lentamente. Era um aparelho prateado, longo e estranho. Num lado desse objeto de prata, abriu-se uma porta e apareceu o homem alto. — Se você trabalhasse um pouco mais, não teria esses sonhos malucos. — Pois gostei dele — disse a Senhora K, recostando-se na poltrona. — Nunca pensei ter tanta imaginação. Cabelos negros, olhos azuis e pele branca! Um homem estranho, mas muito bonito. — Seu homem ideal, naturalmente. — Não seja antipático. Não o imaginei deliberadamente, apareceu-me enquanto cochilava. Mas não foi um sonho. Foi uma coisa tão inesperada, tão diferente... O homem olhou-me e disse: "Venho do terceiro planeta. Me chamo Nathaniel York..." — Um nome idiota. Não é um nome. — Naturalmente, é idiota porque é um sonho — explicou a mulher, com suavidade. — Ele acrescentou: "Esta é a minha primeira viagem pelo espaço. Somos dois na nave: eu e meu amigo Bert". — Outro nome idiota. — E disse em seguida: "Viemos de uma cidade da Terra. Esse é o nome do nosso planeta". Foi isso o que ele falou, a Terra. E usava outra língua. Apesar disso, eu o compreendia com a mente. Telepatia, suponho. O Senhor K voltou-se para sair, mas sua mulher o deteve, chamando-o com voz muito suave. — Yll? Você alguma vez se perguntou... bom, se alguém vive no terceiro planeta? — No terceiro planeta não pode haver vida — o Senhor K explicou pacientemente. — Nossos cientistas descobriram que há excesso de oxigênio na atmosfera dele. — Mas não seria fascinante se fosse habitado? E que seus habitantes viajassem pelo espaço em alguma coisa semelhante a uma nave? — Ora, Ylla, você sabe que detesto os desvarios sentimentais. Vamos trabalhar.
Caía a tarde, e enquanto passeava entre as sussurrantes colunas de chuva, a Senhora K começou a cantar. Repetiu a canção mais de uma vez. — Que canção é essa? — perguntou o marido, interrompendo-a, enquanto se aproximava para sentar-se à mesa de fogo. A mulher ergueu os olhos e, surpresa, colocou a mão na boca. — Não sei. O sol estava no ocaso. A casa começava a se fechar como uma flor gigantesca. O vento soprou entre as colunas de cristal. Na mesa de fogo, o fulgurante poço de lavas prateadas cobriu-se de bolhas. O vento moveu o cabelo avermelhado da Senhora K e murmurou suavemente em seus ouvidos. A Senhora K ficou olhando em silêncio, com seus olhos dourados, úmidos e doces, o longínquo e pálido fundo do mar, como se estivesse lembrando de alguma coisa. — Brinda só a mim com teus olhos e eu brindarei com os meus — cantou lenta e suavemente em voz baixa. — Ou deixa um beijo na taça e eu não pedirei vinho. Fechou os olhos e murmurou, movendo as mãos bem lentamente. Era uma canção muito bonita. — Nunca ouvi essa canção. É sua? — perguntou o Senhor K, olhando-a com firmeza. — Não. Sim... não sei — vacilou a mulher. — Nem mesmo compreendo as palavras. São de outra língua. — Qual? A Senhora K deixou cair, distraidamente, uns pedaços de carne no poço de lava. — Não sei. Um momento depois tirou a carne, já pronta, e serviu-a ao marido. — Acho que é uma bobagem que eu inventei. Não sei por quê. O Senhor K não respondeu. Olhou a mulher atirar uns pedaços de carne no poço de fogo sibilante. O sol já se fora. Lenta, muito lentamente, a noite chegou e encheu o local, inundando o casal e as colunas, como um vinho escuro que subisse até o teto. Só a lava de prata, acesa, iluminava os rostos.. A Senhora K cantarolou novamente aquela canção estranha. O Senhor K levantou-se bruscamente e saiu irritado. Mais tarde, sozinho, o Senhor K acabou de jantar. Levantou-se da mesa, espreguiçou-se, olhou a mulher e disse, bocejando: — Vamos pegar os pássaros de fogo e nos divertir na cidade. — Sério? — perguntou a mulher. — Você está se sentindo bem? — Por que a surpresa? — Há seis meses que não vamos a lugar algum. — Creio que é uma boa idéia. — Você ficou de repente muito atencioso. — Não diga isso — replicou o Senhor K — Quer ir ou não? A Senhora K olhou o pálido deserto. As luas brancas gêmeas subiam na noite. A água fresca e silenciosa corria em torno dos seus pés. Estremeceu levemente. Queria ficar sentada em silêncio, sem mexer-se, até que acontecesse o que havia estado esperando todo o dia, o que não podia acontecer, mas talvez acontecesse. A canção roçou sua mente como uma rajada. — Eu... — Vai-lhe fazer bem — insistiu o marido. — Vamos. — Estou cansada. Numa outra noite. — Tome seu cachecol — insistiu o Senhor K, dando-lhe um frasco. — Há meses que não saímos. A mulher não o olhava. — Você tem ido duas vezes por semana à cidade de Xi — afirmou. — Negócios. — Ah — murmurou a Senhora K para si mesma. Do frasco brotou um líquido que se converteu numa neblina azul e envolveu o pescoço da Senhora K em suas ondas. Os pássaros de fogo. esperavam, como brilhantes brasas de carvão, sobre a areia fresca e lisa. A barquinha branca flutuante, unida aos pássaros por mil fitas verdes, movia-se suavemente no vento noturno. Ylla recostou-se na barquinha e, a uma palavra do seu marido, os pássaros de fogo lançaram-se, ardentes, para o céu escuro. As fitas esticaram-se e a barquinha elevou-se, deslizando sobre a areia, que rangeu suavemente. As colinas azuis desfilaram, desfilaram, e a casa, as colunas úmidas, as flores aprisionadas, os livros sonoros e os regatos sussurrantes do chão ficaram para trás. Ylla não olhava para o marido. Ouvia suas ordens, enquanto os pássaros em chamas subiam, ardendo, no vento, como dez mil faíscas quentes, como fogos de artifício no céu, amarelos e vermelhos, que arrastavam a pétala de flor que era a barquinha. Ylla não olhava as antigas e axadrezadas cidades mortas, nem os velhos canais de sonho e solidão. Como uma sombra de lua, como uma tocha acesa, voavam sobre rios e lagos secos. Ylla só olhava para o céu. O marido falou. Ylla olhava para o céu. — Você não me ouviu? — O quê? O Senhor K suspirou. — Podia, pelo menos, prestar atenção. — Estava pensando. — Eu não sabia que você era amante da natureza, mas sem dúvida o céu está lhe interessando muito esta noite. — É belíssimo. — Que tal falar com Hulle esta noite? — perguntou o marido, lentamente. — Saber se poderemos passar uns dias, no máximo uma semana, nas Montanhas Azuis. É só uma idéia... — Nas Montanhas Azuis! — gritou Ylla, agarrando-se na borda da barquinha e virando-se rapidamente para ele. — Ora, é só uma idéia... Ylla estremeceu. — Quando você quer ir? — Pensei que poderíamos partir amanhã de manhã — respondeu o Senhor K, despreocupadamente. — Sairmos cedo e todas essas coisas. — Mas nunca fomos tão cedo assim! — É só esta vez... — Ele sorriu. — Vai-nos fazer bem. Paz e silêncio. Você sabe. Você não tinha planejado outra coisa, tinha? Iremos, não é? Ela respirou fundo, fez uma pausa e depois respondeu: — Não. — O quê? Seu grito assustou os pássaros. A barquinha sacolejou. — Não — repetiu com firmeza. — Está resolvido. Não quero ir. Ele a olhou. Nada mais disseram depois disto. Ylla virou-lhe as costas. Os pássaros voavam como dez mil tições ao vento.
Ao amanhecer, o sol, atravessando as colunas de cristal, dissolveu a névoa que sustentava o sono de Y11a. Ficara a noite inteira flutuando sobre o chão, apoiada no suave colchão de névoa que brotou das paredes quando ela se deitou para descansar. Dormiu a noite toda sobre aquele rio quieto, como um barco sobre uma corrente silenciosa. Agora que o calor dissipava a névoa, o colchão de bruma foi baixando até depositá-la na praia do despertar. Ylla abriu os olhos. Seu marido a olhava de cima. Dava a impressão de que estava ali havia horas, observando-a. fila não sabia por quê, mas não pôde encará-lo. — Você esteve sonhando outra vez! — disse ele. — Você falou alto e não me deixou dormir. Na verdade, acho que você deve procurar um médico. — Não é nada. — Você falou muito, sonhando. — Falei? Ficou de pé. O frio do amanhecer entrava no quarto. Uma luz cinzenta envolvia seu corpo. — Você sonhou com o quê? Ylla fez um esforço para se lembrar. — Com a nave. Tornou a vir do céu, pousou, o homem alto saiu, falou comigo, dizendo coisas engraçadas e rindo. — Foi agradável. O Senhor K tocou numa coluna. Fontes de água quente e vaporosa esguicharam, expulsando a friagem do quarto. O rosto do Senhor K estava impassível. — E então — continuou ela — o homem, que disse ter o estranho nome de Nathaniel York, disse-me que eu era bela e... e me beijou. — Ah! — gritou o marido, virando-se e afastando-se violentamente, contraindo os maxilares. — Não passou de um sonho — disse ela, divertida. — Pois fique com seus bobos sonhos femininos! — Você está parecendo criança. — Reclinou-se sobre os restos da bruma química. Logo depois, riu suavemente. — Estou me lembrando mais alguma coisa do sonho — confessou. — Vamos, o que foi, o que foi? — gritou ele. — Yll, você está muito mal-humorado. — Digal — exigiu ele. — Você não pode esconder coisas de mim! Seu rosto estava sóbrio e duro, enquanto a olhava de cima. — Nunca vi você assim — respondeu ela, meio chocada, meio divertida. — O que aconteceu foi que esse Nathaniel York me disse... ora, me disse que ia me levar com ele na sua nave, pelo céu afora, de volta para o planeta dele. Chega a ser ridículo. — Sim, ridículo! — disse ele, alteando a voz. — Você devia ter-se ouvido lisonjeando-o, falando com ele, cantando com ele, ó deuses, a noite toda. Você devia ter-se ouvido! — Yll! — Quando ele vai pousar? Onde vai descer com sua maldita nave? — Yll, baixe a voz. — Que se dane a voz! — inclinou-se rigidamente sobre ela. — E nesse sonho — agarrou-lhe o pulso — a nave não ia pousar no Vale Verde, hem? Responda! — Ora, ia... — E nesta tarde, não é? — continuou segurando-a. — Ia, ia, acho que sim, ia, mas só no sonhol — Bem — largou-lhe a mão rudemente — foi bom ter falado a verdade! Ouvi cada palavra que você disse no sonho. Citou o vale e o momento. Ofegante, caminhou entre as colunas como um homem cego por um raio. Pouco a pouco foi acalmando a respiração. Ela o olhava como se ele estivesse louco. Finalmente, levantou-se e andou na direção dele. — Yll — sussurrou. — Estou bem. — Você está doente. — Não — forçou um sorriso cansado. — Criancice. Desculpe-me, querida. — Pegou-a desajeitadamente. — Tenho trabalhado demais ultimamente. Desculpe-me. Acho que vou me deitar um pouco... — Você está muito nervoso. — Agora estou bem. ótimo. — Suspirou. — Vamos esquecer tudo isto. Olhe, ouvi ontem uma piada sobre Uel. Vou contar. E se você preparasse o café enquanto eu conto a piada, e não falamos mais em nada disso? — Foi só um sonho. — Claro. — Beijou-lhe o rosto maquinalmente — Só um sonho.
Ao meio-dia, o sol estava alto e abrasador, e as colinas resplandeciam na luz. — Você vai à cidade? — perguntou Ylla. — À cidade? — ergueu levemente as sobrancelhas. — Este é o dia em que você sempre vai. Ajeitou a gaiola de flores no seu pedestal. As flores agitaram-se, abrindo as bocas amarelas esfomeadas. Ele fechou o livro. — Não. Está muito quente e já é tarde. — Ah. — Terminou o que estava, fazendo e caminhou para a porta. — Bem, volto logo. — Espere aí. Aonde você vai? Ela chegara rapidamente na porta. — A casa de Pao. Ela me convidou. — Hoje? — Fazia tempo que eu não a via. É pertinho. — No Vale Verde, não é? — Isso mesmo, um passeio não muito longo. Pensei que... Apressou-se. — Lamento, lamento muito — disse ele, correndo atrás dela e parecendo muito aborrecido por ter esquecido. — Esqueci completamente. Convidei o Dr. Nlle para vir aqui esta tarde. — Dr. Nlle! Ela chegou à soleira da porta. Yll pegou-a pelo cotovelo e trouxe-a firmemente de volta. — Ele mesmo. — Mas Pao.. . — Pao pode esperar, Ylla. Precisamos receber Nlle. — Só um pouquinho... — Não, Ylla. — Não? Ele balançou a cabeça. — Não. Além disso, até a casa de Pao é uma longa caminhada. Atravessar o Vale Verde todo, passar o grande canal e descer, não é? — Está quentíssimo e o Dr. Nlle gostará muito de vê-la. Está bem? Ela não respondeu. Queria libertar-se e correr. Queria gritar. Mas apenas sentou-se na cadeira, virou os dedos para cima olhando-os inexpressivamente, vencida. — Ylla? — murmurou ele. — Você vai estar aqui, não é? — Sim — respondeu ela, depois de um longo silêncio. Estarei aqui. — A tarde inteira? — A tarde inteira. Sua voz estava embotada.
No fim do dia, o Dr. Nlle ainda não havia aparecido. O marido de Ylla não parecia nem um pouco surpreso. Quando ficou muito tarde, ele murmurou qualquer coisa, foi até o armário e tirou uma arma de aspecto sinistro, um tubo amarelado comprido, que terminava num fole e num gatilho. Voltou-se e exibiu no rosto uma máscara forjada em metal prateado, inexpressiva, a máscara que sempre usava quando queria esconder seus sentimentos, a máscara que se adaptava tão perfeitamente à sua face, queixo e testa magros. A máscara cintilou e ele segurou a arma sinistra, olhando-a. Ela produzia incessantemente um zumbido de inseto. Hordas de abelhas douradas poderiam surgir dela, com uni alarido estrídulo. Horrendas abelhas douradas que picavam, envenenavam e caíam mortas como sementes na areia. — Onde você vai? — perguntou Ylla. — O quê? — Prestava atenção nos foles, no sinistro zumbido. — Se o Dr. Nlle está atrasado, não vou ficar esperando. Vou sair e caçar um pouquinho. Volto logo. Você tem certeza de que vai ficar aqui, não é? A máscara prateada cintilou. — Tenho. — E diga ao Dr. Nlle que voltarei. Fui apenas caçar. A porta triangular fechou-se. Seus passos morreram na colina. Ela o observou caminhar na luz do sol até desaparecer. Depois continuou a trabalhar, retirando o pó magnético e os novos frutos, nascidos nas paredes de cristal. Trabalhava com energia e rapidez, mas em certo momento um torpor apoderou-se dela e então viu-se cantando a estranha e memorável canção, olhando para o céu além das colunas de cristal. Conteve a respiração e ficou imóvel, esperando. Estava se aproximando. Podia acontecer a qualquer momento. Era como nos dias em que se ouve uma tempestade chegando e há aquele silêncio de espera e uma imperceptível mudança de atmosfera enquanto o clima explode sobre o solo em rajadas, sombras e brumas. E a mudança nos pressiona os ouvidos e ficamos suspensos no tempo de espera da tempestade que se aproxima. Começamos a tremer. O céu fica manchado e colorido. As nuvens engrossam. As montanhas adquirem um tom ferroso. As flores engaioladas emitem leves murmúrios de advertência. Sentimos o cabelo agitar-se suavemente. Em algum lugar da casa o relógio-falante canta. "Hora, hora, hora, hora..." sempre com a mesma suavidade, como água pingando em veludo. E depois, a tempestade. As descargas elétricas, as cascatas de águas escuras e os trovões negros caindo, presos para sempre. Era o que estava acontecendo. Preparava-se uma tempestade, embora o céu estivesse claro. Aguardavam-se os relâmpagos, porém não havia uma nuvem. Ylla caminhou pela irrespirável casa de verão. Os relâmpagos iriam cair do céu a qualquer momento. Haveria um trovão, um rolo de fumaça, um silêncio, passos na trilha, uma batida na porta cristalina, e ela correria para atender... Pobre Ylla!, escarneceu. Por que pensar essas coisas bobas com sua mente preguiçosa? E então aconteceu. Sentiu calor como se um grande fogaréu atravessasse o espaço. Um som. Um som turbilhonante e impetuoso. Um resplendor metálico no céu. Ylla gritou. Correndo entre as colunas, escancarou a porta. Olhou para as colinas. Mas agora não havia nada. Estava a ponto de correr para a colina, quando obrigou-se a parar. O trato era ficar ali, não ir a parte alguma. O médico vinha fazer uma visita e o marido ficaria zangado se ela saísse. Esperou na porta. arfando e com a mão estendida. Fez um esforço para ver na direção do Vale Verde, mas nada conseguiu. Boba. Entrou. Você e sua imaginação, pensou. Foi apenas um pássaro, uma folha, o vento ou um peixe no canal. Sente-se. Descanse. Sentou-se. Soou um tiro. Muito claramente, repentinamente, o som da horrível arma de insetos. Seu corpo estremeceu. Vinha de longe. Um tiro. O zumbido veloz de abelhas distantes. Um tiro. E depois um segundo tiro, preciso, frio e longínquo. Seu corpo tornou a tremer e, sem saber por quê, começou a gritar, a gritar, sem querer parar. Correu impetuosamente pela casa e tornou a escancarar a porta. Os ecos morriam ao longe. Desapareceram. Ela esperou no jardim, com o rosto pálido, durante cinco minutos. Finalmente, com passos lentos, cabisbaixa, vagueou pelos aposentos de colunas, deixando a mão roçar nas coisas, com os lábios trêmulos, até finalmente sentar-se sozinha, esperando na escura sala do vinho. Começou a esfregar um copo de âmbar com a ponta do chale. E então, ao longe, ouviu o ruído de passos no cascalho. Levantou-se e ficou de pé no centro da sala silenciosa. O copo caiu de suas mãos, partindo-se em mil pedaços. Os passos hesitaram fora da porta. Deveria falar? Deveria gritar: "Entre, ah, entre"? Deu alguns passos para a frente. Os passos subiram a rampa. Uma mão girou a maçaneta. Ela sorriu para a porta. A porta abriu-se. Ela parou de sorrir. Era seu marido. A máscara prateada tinha um brilho opaco... O Senhor K entrou na sala e mal a olhou. Abriu os foles da arma, sacudiu fora duas abelhas mortas, ouviu-as bater no chão quando caíram, pisou-as e colocou a arma-fole descarregada no canto da sala, enquanto Ylla se abaixava, tentando sem sucesso apanhar os pedaços do copo quebrado. — O que você esteve fazendo? — perguntou ela. — Nada — respondeu Yll, de costas. Tirou a máscara. Mas, e a arma... Ouvi você atirar. Duas vezes. — Estava caçando. De vez em quando dá vontade de caçar. O Dr. Nlle veio? — Não. — Espere um instante. — Estalou os dedos, aborrecido. — Ora, agora estou me lembrando. Deverá vir amanhã à tarde. Que confusão a minha. Sentaram-se para comer. Ela ficou olhando para a comida sem mover as mãos. — O que é que há? — perguntou o marido, sem levantar os olhos da carne que estava mergulhando na lava borbulhaste. — Não sei. Não tenho fome — respondeu Ylla. — Por quê? — Não sei. Apenas não tenho fome. O vento percorria o céu. O sol estava se pondo. A sala tornou-se subitamente pequena e fria. — Estava procurando me lembrar — disse ela, na sala silenciosa, sentada diante da figura do frio e empertigado marido de olhos dourados. — Lembrar de quê? Yll bebericou seu vinho. — Daquela canção. Daquela delicada e linda canção. — Fechou os olhos e solfejou, mas não era a canção. — Esqueci. E, sabe, não quero esquecê-la. É algo que quero sempre lembrar. — Balançou as mãos como se o ritmo pudesse ajudá-la a lembrar tudo. Depois recostou-se na cadeira. — Não consigo lembrar. Começou a chorar. — Por que está chorando? — Não sei, não sei, mas não posso evitar. Estou triste e não sei por quê, choro e não sei por quê, mas estou chorando. Colocou o rosto entre as mãos. Seus ombros eram sacuddos pelos soluços. — Amanhã você estará bem — disse ele. Ylla não o olhou. Apenas ergueu os olhos para o deserto vazio, e as estrelas muito brilhantes começaram a aparecer no céu escuro, enquanto ao longe ouvia-se o som do vento nascente e o barulho das águas correndo, frias, nos longos canais. Ela fechou os olhos, trêmula. — Sim — falou. — Amanhã estarei bem.
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